Demanda sustentável afasta possibilidade de crise como a de 2008
Quem vive nos Estados Unidos há pelo menos 14 anos tem bem viva na memória aquela que foi uma das maiores instabilidades financeiras da história – o estouro da bolha do mercado imobiliário, no final dos anos 2000. Na época, a supervalorização dos preços dos imóveis na América, totalmente fora da realidade, exacerbou os investimentos nos financiamentos, levando à chamada crise do subprime, que teve a Flórida como um de seus epicentros. Por isso, o aquecimento do setor em cidades como Miami, Boca Raton e Orlando, as baixas taxas de juros e o endividamento excessivo que estamos vendo agora acenderam o sinal de alerta para um novo colapso… afinal, como diz o ditado popular, cachorro mordido por cobra tem medo de linguiça.

Apesar de algumas semelhanças entre 2008 e 2022, este temor é infundado. Quem garante é a consultora em Real Estate Elizabeth Alderete, presidente do Brazilian Business Group (BBG) e proprietária da InvestBrasilUSA, que atua principalmente no mercado imobiliário da Flórida. Segundo ela, a valorização das residências na região, em torno de 24% só no último ano de acordo com um relatório do site Zillow, não tem fundo especulativo, como no passado, mas é fruto da alta demanda e oferta restrita. “A Flórida é mais uma vez o eldorado, não apenas para estrangeiros, como para residentes de outros estados americanos. O perfil dos moradores vem se transformando de aposentados para famílias em busca de mais qualidade de vida e oportunidades. Deixamos de ser uma área meramente turística”, explica Alderete.
São mais de mil pessoas se mudando para a Flórida todos os dias, desde que começaram a pandemia e a tendência de trabalho remoto. E por que não? Com uma temperatura agradável o ano todo (ok, julho e agosto nem tanto), a menor carga tributária do país e os imóveis a preços ainda convidativos, o Sunshine State é também o destino de muitas empresas, que estão trazendo seus talentos para cá – desde bancos, até indústrias e companhias de tecnologia, aviação e hospitalidade. O estado cresceu em população mais do que o dobro da média nacional, atestou o último censo.
Alderete acrescenta que esses elementos apontam na direção de uma estabilização no mercado imobiliário da Flórida nos próximos anos. “Ninguém precisa se preocupar com uma nova bolha. Até porque os fundamentos da concessão de hipotecas estão muito mais rigorosos. Muitos imóveis são adquiridos em dinheiro, e os financiamentos só são aprovados mediante critérios e uma exigente comprovação de condições. Além disso, os compradores atuais, mesmo os estrangeiros, têm vínculos com a região e não são meramente investidores”, explicou a corretora.
Muito além do subprime
Uma crise como a do subprime não acontece da noite para o dia… mas se é possível apontar uma data para o início desta trajetória de altos e baixos no setor imobiliário dos EUA nos últimos 14 anos, podemos dizer que aquele 15 de setembro de 2008 foi emblemático. Um dos mais tradicionais bancos americanos, o Lehman Brothers, fundado em 1850, decretava falência e dava início ao efeito dominó que derrubou outras instituições financeiras, as bolsas de valores e a credibilidade da estrutura econômica americana.
Antes disso, porém, os sinais de uma eventual bolha imobiliária já eram visíveis: economia aquecida, taxa básica de juros baixa, especulação e concessão livre de crédito, inclusive a clientes de menor renda. O mercado (leia-se, quem oferecia financiamentos) vivia um faz de conta, emprestando dinheiro a quem provavelmente não teria condições de arcar com os pagamentos. Não por acaso, estas hipotecas foram apelidadas de crédito podre, e os clientes, de NINJA (das iniciais do inglês “neither income, nor job/assets”, ou alguém sem renda, trabalho ou ativos financeiros). Em 2008, o índice de preços dos imóveis, que vinha de uma alta superior a 120% em cinco anos, registrou a maior queda da história: algo em torno de $19 trilhões.
De lá para cá, a área imobiliária conviveu com outros momentos de instabilidade. Em 2013, por exemplo, a intensa recuperação do setor em alguns estados, como a Califórnia, Nevada, New York e Flórida, no tocante às propriedades de luxo, criou expectativas quanto a uma nova bolha. Especialistas chegaram a fazer previsões pessimistas sobre aquela conjuntura, inclusive o Nobel de Economia Robert J. Shiller, que alertou para a fragilidade da economia diante de um novo boom. As hipotecas conhecidas como “jumbo”, contudo, não causaram problemas, até pelo nicho destes mutuários – abastados, que comprometiam apenas um percentual pequeno da renda familiar no financiamento.
Há poucos anos, quando a pandemia afetou praticamente todas as atividades econômicas, a área imobiliária não ficou imune: nos primeiros meses após o lockdown de março de 2020, as transações caíram cerca de 20% nos EUA, o que restabeleceu uma perspectiva negativa acerca de mais um desequilíbrio no setor. Por pouco tempo. Novamente o mercado mostrou resiliência diante das sucessivas crises, sejam elas provocadas por fatores externos ou pelo próprio sistema. “O capitalismo tem uma capacidade criativa-destrutiva e isso vem desde os anos 1920. Ou seja, um boom seguido por implosão. E isso não vai mudar, pois as pessoas tentam usar o sistema para gerar lucros”, resume Peter Zalewski, consultor imobiliário em Miami.
Por isso mesmo, não chega a ser surpresa uma análise da economista Niraj Shah, com base em dados da Bloomberg, de que o estímulo do governo para recuperar o país alimentou um novo monstro: as conhecidas bolhas imobiliárias. Esta é uma pauta que sempre vem à tona no cenário de volatilidade. Nesse sentido, vale citar aqui mais um comentário tranquilizador da corretora Elizabeth Alderete: “As crises do setor imobiliário realmente são cíclicas e acontecem há décadas. No entanto, os erros do passado ajudaram a moldar a consciência dos reguladores atuais”.

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